Parque do Sem Perdão
Ela está nua no meio do parque. Desapareceu todo o ar. Está sem ar... não consegue respirar. Caiu de novo na armadilha. Não sabe até onde seu corpo enorme a levará. Um corpo desmedido. Um corpo que a torna uma superfície alastrada... Ela se encontra de novo num descampado sem nenhum limite. Ela não consegue ver onde está a fronteira que permitiria que saísse do parque. Está nua e angustiada... Está nua e perplexa... Está nua e enjoada... perdeu a carteira vermelha onde estão todos os cartões... Ela quer romper a fronteira e forçar passagem... Precisa recuperar o ar que lhe fugiu dos pulmões. Sabe que tudo se concentra no íntimo, num núcleo acumulado, um grão doloroso, um início de tumor... Algo que pressiona de dentro pra fora. Seu corpo cresce... Olha o mapa desenhado no chão de terra, mas as direções estão frouxas, setas indicativas fazem voltas sobre si mesmas. Ela foi até o último gole de água com açúcar no copo e os pulmões se fecharam. Ela espera alguém que desate os nós que prendem seus calcanhares. Alguém que divulgue a fé aos berros de que Jesus a salvará dela própria... Procura os sinais dos anjos embevecidos. O ar está frio e seu corpanzil não consegue fabricar calor. Está monstruosa, está gelada, está chorando sem lágrimas, chora seco, engole seco, treme, esquenta, esfria, a boca arrebenta. Seu lábio superior tem a metade corroída e ferve... áspero, duro, caloso. O terremoto passou, mas os tremores continuam. Ela está na desconformidade. Voltou a galope, desabalou cega. Não há nó que não poderá ser desfeito. Pensa e se ajoelha no espinho. Sabe que havia orquídeas no sonho. A imagem é fugidia. Um galho de equimoses. Vê os segundos passarem sucessivos e lentos, percebe o tempo gelatinoso em que se move sem poder sair do lugar. Está presa a uma promessa impossível. Está no impossível de novo. Cadela vadia abocanhou um pedaço de osso que se espetou na garganta. Sufoca. Tosse sem conseguir expelir aquilo. Tu bem conheces meu desespero. Tu bem conheces meu desespero. Tu bem conheces meu desespero. Gira o corpo na tentativa vã de se deslocar. Um caranguejo azul sem patas. Um animal sem presas. Nem os astros poderão ajudá-la a se orientar. Não consegue ultrapassar o portal da astrologia real. Percebe que as estrelas se deslocam sem pressa, mas sem direção. Está tonta. Outra vez. Repete. Outra vez. Repete. Outra vez. Um rosto afetuoso pode esconder as presas peçonhentas. Em meio às trevas, pedaços rotos de tecidos como as bandeiras no Central Park. Ela está no parque do Sem Perdão de novo. As chaves ficaram no paletó do vizinho. Inútil telefonar e pedir que venha abrir a porta. O parque do Sem Perdão impede que saia até a ordem. Sussurra “Que seja feito agora. Que seja feito agora. Que seja feito agora...” Tem as mãos sujas de terra, não de sangue, como na peça do Rei assassino. Sente a terra como matéria. Passa a língua no chão, perde as forças, pede forças. Está aberto o sétimo selo. A caixa de ferro onde guarda as lembranças. Os bilhetes que enviava para si mesma. Cartas de amor que nunca foram abertas, nunca puderam ser lidas. Finíssima ternura em desordem, hoje ela cortaria teu cordão umbilical. Estava sem óculos, o mundo embaçado lhe parecia mais brando e bonito como uma pintura impressionista. As luzes acesas, mal o dia anoiteceu, são estrelas espocadas no azul violeta. Pede abrigo às asas de um pássaro enorme. Pede pra se aninhar sob suas asas. Pede ninho. Perde-se. No instante seguinte está absorta no parque Sem Perdão. Sem Misericórdia. O coração está exposto. Perfurou a pele. Pulsa encarnado. Secreto desejo exposto ao ar livre. Esfrega-se no chão de terra, rasteja como uma lagarta. Espera que venham os anjos, os anjos bem-nascidos, os anjos celestes, que venham, que desçam, que se reúnam que cantem os hinos de louvor. Ela deita o ouvido direito sobre a terra. Procura ouvir os rumores dos minúsculos animais sob a superfície, o rumor das raízes sugando água, procura ouvir os sons da vida rompendo o escuro. Chegando até seus ouvidos. Sente que pode ter uma convulsão a qualquer momento. Sente um gosto amargo na boca. Um espasmo à boca do estômago. Sente que vai vomitar colostro.
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