domingo, 23 de setembro de 2007

Branco sobre branco para ler

Branco sobre branco

Ela mergulha numa piscina de líquido branco: leite ou esperma. Esquece tudo. Nada. A pele escorrega pelo volume viscoso e acre, os movimentos lentos, desloca-se de peito e depois de costas, olhos fechados, ela nada.

Esquece. Memória branca. O momento seguinte e o anterior não contam mais. Nenhuma culpa, nenhum arrependimento. Ela nada. A memória, nada. Uma nata. Sem substância, sem alma, ela bóia, existe e respira na epiderme. Uma sobrepele branca translúcida nutriz recobre toda superfície do corpo, clara, como o verniz das unhas.

Mergulha mais fundo redescobre a cor branca. Está esgotada. Não quer sentir nada. Ela nada. Destaca-se dos bens transitórios, ela, o corpo, pelos, músculos, ossos e nervos. Ela, não mais uma presença, aspira o branco, o pó branco. Ela, evidência, posta sob as vistas, um nada, um branco por dentro, vísceras brancas. Uma porcelana como cérebro.

Ela, heroína na veia. O branco anestesia, o líquido vaporoso penetra na veia, não sente nada, o corpo dormente, esgota toda a antiga intensidade, toda antiga sensibilidade, solta-se de si mesma, flutua, no berço esplêndido do leite da mãe , do esperma, do cuspe. Bebe o líquido branco como um longo drink, um dry martini, uma bebida branca. Abre as coxas, deixa que o liquido penetre todo seu corpo. Não goza, não sofre.

Como virgem, como donzela, apenas dorme. Sente o ar perfumado com o odor de frutas e flores, esquece seu bem amado, que a esperava. Esquece, deixa a memória, a lembrança, sair como uma longa expiração treinada quando aprendera a nadar. Conta um, dois, três, inspira enfia a cabeça no branco e expira lentamente. Inspira pela boca, solta pelo nariz. Nem se pergunta se a morte é feminina. Quer reter o aprendizado e deleite no nada. Ela só nada. Está só no nada. Só e mais nada.

Um cisne abre o bico de onde nenhum som escapa, nada. Um rato albino, a despigmentação e a cegueira, a língua queda no nada. Depois de algum tempo mergulhada no branco, sente o corpo inteiro, menos o ventre, sente o pescoço, coberto de escamas, como as de um cavalo aquático. Escamas cartilaginosas reunidas por meio de certos tendões, de modo que ela se move facilmente no branco. Quase não respira, a pressão desceu, o pulso é o de um grande paquiderme. O lençol liquido escorrega na sua nudez, ela se perde. Ela no nada.

Ana Chiara, 31 de maio de 2007.


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Branco sobre branco dentro do ouvido




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