quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Das águas para ler

Das águas

E aí, neguinho, sabes que entre minhas pernas corre um rio? Que por ele passam as borboletas azuis? Pensa com o coração... lembra a lembrança mais doce... aquela dos açúcares, da doçura máxima até o arrepio e enjôo do estômago. Lembra disso, neguinho? Lembra como circulava na veia? Maçãs banhadas no mel...

E aí, neguinho, pensa que não te vi lavando as mãos durante longos minutos, tentavas apagar meu cheiro... o cheiro das águas que correm? Das águas doces, dos rios e das cachoeiras? Viste onde foi parar aquela peixinha cor de rosa, a noiva? Como despencou de ponta cabeça no chão de um largo vazio no maracanã?

Que tu sabes das águas, do que molha? Da força de uma onda se levantando até te cobrir todo? E depois como te enrola, te dá um caldo, te arranha no fundo? E quando a onda se recolhe, neguinho, te deixando afogado? Que tu sabes das águas doces do rio que corre entre minhas pernas? Dos redemoinhos escuros, das pedras escondidas no fundo barrento? Que sabes? Das uiaras? Das iaras? Tu sabes...?

Que sabes da água de uma melancia aberta? Do sorriso do gato de Alice...do líquido doce que escorre nas mãos quando mordes a fruta? Que sabes deste vermelho adocicado? Destas sementes que cospes, jogas fora, sem poder engolir, as sementes com as quais te engasgas, sufocas? Que sabes da fruta quando empurras o prato, farto... sem suspeitar da sede escondida no secreto do teu peito... Sabes destas coisas todas?

Sabes do rio de água ardente que escorre entre minhas penas? O rio que tem embebe? Embebeda? A taça transparente em que passas a língua vermelha como pimenta dedo de moça? O álcool que te arrasta para paraísos artificiais, te deixa mole e pasmo diante do mundo de oferendas impossíveis?

Lembras disso, neguinho? Um bar, um espaço flutuante sobre um mar azul e verde... as montanhas dois irmãos iluminadas artificialmente? Tu te enrolas nas pernas trêbadas? Tropeças nas palavras estrangeiras como piercings doloridos? Nada é fácil, nada vem de graça... nos oceanos banhados da américa do sul, tudo engana e restam as restingas no coração do poeta, pedaços calcáreos onde quer se agarrar... as restingas de marambaia? As lagoas rodrigo de freitas como um olho de gigante te chamando, foge delas, Doçura, arrepia caminho, bate em retirada. Bate com força na madeira, mangalô três vezes...

Conheceste a terceira margem deste rio? Foste até ela? Chegaste lá? Ofegante ainda? Ou morreste – como se diz – na praia deste rio... antes do antes do depois do antes do depois da margem que circula, perdeste tua alma nesta hidrografia enlouquecida do desejo ambidestro, ambivalente, desejo instável, desejo de anjo inocente, desejo sem sexo, desejo de poda e desejo de foda. Corda com que me quiseste enforcar como polvo....

Jura, neguinho, que o letreiro colorido era inocência bandida? Uma alucinação no deserto, oásis, mina d´água pro viajante, paradinha pra descanso?

Alivia teu rosto afogueado espargindo gotinhas bentas dessa água, aproveita o dia, o que vem na corredeira do rio que corre entre minhas pernas. Aguarda. Guarda-te de mim, mas não agora, ainda não... Olhas de frente para este cartão postal. O endereço está correto? Houve greve nos correios.

Sorri pra mim mais uma vez, Doçura? Vamos nadar nas águas do rio? Depois vamos embora mais uma vez. Passos atrás... pé ante pé o vulto se esconde na soleira da porta antes de apagar a luz...


Ana Chiara

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Das águas dentro do ouvido

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